segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Eu não queria mais ter esperanças, essa coisa gentil. Isso que chamo de minha vida, ou o que restava dela, e não deveria ser muito porque o passeio dos dedos pelo rosto revela sulcos cada vez mais fundos, estava creio que deliberadamente reduzido àquele subir e descer escadas, mexer nas tintas, recortar papéis, pintar vidraças, enfiar contas, caminhar às vezes pelas ruas esvaziadas de gentes tarde da noite. Eu tinha escolhido assim, num remoto dia qualquer em que deixei de acreditar, não lembraria quando, e isso era para sempre tanto quanto pode ser para sempre o que por estar vivo tem um coração que bate mas, imprevisto e fatal, um dia deixará de bater. Por não querer mais depositar esperanças em nada que pudesse vir de fora, já que de dentro nada mais viria, estava certo, além dessas imagens assustadoras da memória, curvei-me até o chão, uma das mãos na cabeça, como se segurasse o ponto de encontro entre duas asas, a outra procurando o assoalho, como se mergulhasse numa touceira espessa de juncos, até encontrar a grama molhada de beira de rio, tocando a pele fria daquela cobra. Foi principalmente para não gritar — acabo sempre fazendo coisas para não gritar, como contar esta história —, já que o grito faria ruído e o ruído abalaria os vizinhos, esses mesmos que entram e saem, e com isso, se soubessem de mim que sou cinza e longo, e possivelmente sabem, pois deve ser justamente essa a silhueta que vêem através das vidraças, que tenho um quarto vazio, isso não descobririam, desde que jamais entrarão em minha casa, saberiam também que dou gritos em horas inesperadas. Para que ninguém soubesse mais nada de mim, deixei que ganhasse forma e viesse lentamente à tona aquele pensamento. Que não era exatamente um pensamento, mas algo mais fundo, como uma anunciação, um pressentimento. Alguma coisa muito dentro de mim dizia algo informe, sem palavras, que poderia talvez ser expresso como — o outro voltará. caio fernando abreu.
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