quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Toque de recolher

No começo nossa relação era uma mansão iluminada e arejada com milhares de andares, janelas e portas abertas. Aos poucos, virou um casebre pequenininho, cheio de ratos e a única porta que sobrou, servia de entrada e saída. Cada vez que eu recomeçava, era como se eu me enterrasse mais e estivesse ainda mais perto do fim. Cada vez que eu abria a porta, a vontade de cerrá-la bem forte e para sempre atrás de mim aumentava absurdamente. A terapeuta dele, uma tia holística com voz de pata morrendo afogada, um belo dia abriu a porta do seu consultório para mim e, sem nunca ter me visto na vida e nem ouvido a minha versão, já foi logo dizendo "você estragou tudo sendo louca, quem te aguenta?" Começo fechando a porta do consultório da pata afogada, dizendo a ela que sim, ela tinha toda a razão: eu era realmente louca e insuportável. Mas que mulher não seria louca e insuportável ao lado de um homem que, sempre sorrindo para disfarçar que é humano, sempre em bando para disfarçar que sente fraquezas e sempre dormindo para disfarçar que está vivo, não tem a menor idéia do que quer fazer agora, daqui dez horas e daqui dez anos?Que mulher não ficaria insana e desequilibrada ao lado de um homem que diz com a boca que ama mas não diz com os olhos, que diz com a boca que está ali para o que der e vier, mas não diz com os atos? Que mulher não piraria e não ficaria chata ao lado de um homem cheio de músculos mas sem nenhuma força para ser um homem melhor? Não, eu não queria o homem perfeito que eu idealizei não, eu só queria um homem de verdade. Um homem que namora de verdade, que ama de verdade, que tenta de verdade, que encara a vida de verdade, que sofre de verdade, que tem saudade de verdade, que tem dor de verdade, que é humano de verdade.
Não, sua pata véia afogada, eu não precisava de um pai, eu não precisava de cuidados 24 horas por dia, eu não precisava de alguém para me salvar, eu não colocava nele toda a minha felicidade, eu não queria mandar nele, eu não queria que ele deixasse de ver a Lua ou curtir o Sol, eu só queria que ele tivesse me amado metade do que ele disse que amava. Ou metade do que eu amava. Que mulher não seria digna de uma camisa de força ao ver que o homem que ela ama é o maior de todos os homens por dentro, mas insiste em ser um idiota, cercado de coisas, palavras, musicas, lugares e pessoas idiotas, por fora? Que mulher não babaria tomando choques na cabeça, ao saber que o homem mais sensível, puro e lindo do mundo, insiste, por medo que o machuquem, em se fazer de invencível e cagar pro resto do mundo? E por fim, eu pergunto a você minha querida super profissional patolina afogada: que mulher suportaria amar um homem que, incapacitado em fuder com a vida da mulher que fudeu com a dele, resolveu fuder com a minha que não tinha nada a ver com isso? Eu só queria ganhar uns beijos e alguns olhares de amor, só isso. Chega, não quero mais essa culpa, esse inconformismo e essa incapacidade de não pensar nessa merda toda. Não quero mais essa fresta por onde entra tanto frio e tanta dor. Nesse momento, fecho a porta inútil do seu consultório escuro e aproveito para fechar também a porta entreaberta que ele deixou no meu coração. Só ele conheceu uma mulher corajosa que admitiu todos os medos, todas as neuroses, todas as inseguranças, toda a parte feia e real que todo mundo quer esconder com chapinhas, peitos falsos, bundas falsas, bebidas, poses, frases de efeito, saltos altos, maquiagem e risadas altas. Ninguém nunca me viu tão nua e transparente como você, ninguém nunca soube do meu medo de nadar em lugares muito profundos, de amar demais, de se perder um pouco de tanto amar, de não ser boa o suficiente.
Só ele viu meu corpo de verdade, minha alma de verdade, meu prazer de verdade, meu choro baixinho embaixo da coberta com medo de não ser bonita e inteligente. Só para ele eu me desmontei inteira porque confiei que ele me amaria mesmo eu sendo desfigurada, intensa e verdadeira, como um quadro do Picasso. Você varreu da sua vida de mesmices seguras, de calmarias estúpidas, de ideais banais, de auto-controles medrosos, de superficialidades controladas, de felicidades fáceis, de gostos iguais, de angústias disfarçadas, de ego machucado, de baladas tristes, de meninas fúteis, de praias iradas, de solidões acalmadas pelo sono, uma mulher com todos os defeitos e loucuras que só uma grande e verdadeira mulher que ama tem. Hoje eu fecho as portas para o ódio descontrolado de quem passa fome ao lado de grandes mansões, fecho as portas da goela estridente da véia coroca que viu sem enxergar mas acabou me fazendo ver ainda melhor quem eu sou e ter orgulho disso, aproveito para fechar de vez, para você, as portas do meu coração que de tanto pedir esmolas, estava virando bandido.
tati bernardi

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