domingo, 19 de dezembro de 2010

Desamor revisitado

Ele chega com uma de suas jaquetas e de longe eu vejo aquele cabelinho de banda suja londrina que eu tanto amei, aquela carinha infantil de “olha, cheguei” que eu tanto amei, aquele olhar de timidez tarada que eu tanto amei… e me pergunto: por que amei tanto e não amo mais?
Ele me aperta como sempre, até que algum ossinho da minha coluna estale, e me diz, como sempre também: “Que é que você tem que eu sempre largo tudo e venho te ver?”
Espreguiço para sugerir desinteresse meu coração bagunça tanto que tenho um ataque de tosse. Entramos de mãos dadas no cinema. Ele me olha sem parar, suspira, a cada movimento que eu faço, cada semblante, cada segundo de raciocínio. Faço um esforço pra tentar me lembrar: por que foi mesmo que eu deixei de amar esse homem? Não faço a menor idéia.
O filme é um lixo mas era o único que tinha e tudo bem. A gente brinca de adivinhar as próximas cenas, o filme todo ao som de “shius” que os humanos limitados fazem, inconformados com aquele casal que tenta boicotar um filme tão supimpa. Sobra pipoca no dente, colamos pipoca na testa. Cada vez que nossas mãos se encontram salgadas, dentro do saco, a gente brinca de se roçar com os dedos como pernas desesperadas.
Antes da gente chegar ao elevador do seu prédio, ele me oferece as costas e eu subo, o vizinho não entende nada, eu berro de longe: “Sou sobrinha dele.” Adoro essa brincadeira e mais uma vez me pergunto: onde eu estava com a cabeça pra deixar de amar esse homem?
Sinto pena dele sozinho naquele apartamento, quase quero ficar ali pra sempre. Ele mostra que tem todas as minhas músicas prediletas no seu iPod última versão. Meu Deus, agora faço o maior dos esforços do ano: por que cacete deixei de gostar desse cara?
Ele pára o mundo todo, se ajoelha no sofá deixando as mãos no meu colo: “Você não sabe a saudade que eu senti todo esse tempo.”Seus olhos se enchem de lágrima, a música se torna instrumental matando qualquer outra palavra, a cidade não respira, o tempo não existe, a solidão é coisa de gente que mora muito longe dali (em Brasília talvez), minha mente aquieta todos os monstros, o outro homem que é dono sem merecer do meu corpo magoado explode no ar deixando apenas estrelas para iluminar meu recomeço, as dúvidas todas do que fazer pelos próximos mil anos se simplificam porque eu só desejo viver aquele momento, sim, sim, sim, eu quero zerar tudo de antes e de depois e amar esse homem agora, como antes, como nunca. Por que não? Mas fico deitada sem forças e coragem para existir.Ele agora está na sacada, tentando pegar algum recado no celular, fala alto, talvez ele deseje mais do que tudo se virar e me ver ali pra sempre. A vida idiota voltou e me fez lembrar novamente que continuo uma idiota. Todo mundo está deitado e decapitado comigo. Todos estão sujos, todos estão ultrapassados, todos choram a intenção de amor que nunca dura.A exploração do meu coração me dá uma sensação mundana de morte pobre e simples, nada de espiritual e eterno ronda minha alma neste momento. Ele me observa da sacada, não se preocupa com o meu frio, com o vazio que me toma novamente e me deixa assim. Ele até tem pena, mas me considera demais para ter pena de mim.
Ele anda mais completo, mais feliz. Eu, corcunda, me enrolo na manta e deixo minha mente dizer que tudo bem: não é a primeira vez que você se sente tão perdida, burra e sozinha. Peço desculpas não aceitas a mim. Antes de chegar à minha casa vejo que ele deixou dois chocolatinhos na minha bolsa, arremesso um deles com ódio na valeta da rua, o outro eu como, afinal, é sempre com a metade de tudo que eu fico porque ninguém nessa merda de vida consegue se dar e ser por inteiro. Agora me lembro porque deixei de amar você, lembro exatamente porque deixei de amar todo mundo. Lembro que mais uma vez deixei de me amar.
Tati Bernardi

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