Quando paramos em frente ao flat, lembro que ainda perguntei mais uma vez se era isso mesmo o que ela queria. Ela apenas me olhou e sorriu triste. Como quando a pessoa está cansada de saber da dor do dia seguinte mas insiste em congelar um dia. E saiu do carro com delicadeza e uma esperança infantil de eternizar segundos. Olhei ela entrando, de longe. Aquilo foi terrível. Queria sair gritando e agarrá-la pelo pescoço. E dizer mais uma vez que ela não precisava disso. E que uma hora tudo iria ser tão lindo e saudável e preenchedor. Mas a deixei ir, como uma mãe que sabe que o filho vai sofrer mas acha inevitável abrir as pernas para libertá-lo. Três coisas facilitaram que ela achasse a vida muito divertida: o óculos escuro vagabundo que ela ganhou no casamento, as havaianas pra quando o pé cansasse e o fato de que a noite ia começar quando o dia já estava para nascer. No elevador ela se achou absolutamente linda. Coisa que só achava nessas situações em que ninguém poderia saber o que ela estava fazendo. Ela se transformava em personagem para enganar a vida chata e todas as suas imperfeições. Tive dó quando vi a alegria que ela sentiu ao ver aquele corredor com dezenas de números. Era como uma gincana inocente onde só uma porta tinha o bilhete premiado e ela era a única que sabia o número. Depois esperei, do lado de fora. Tudo virar frio. Ela se cansar do frio. Ela procurar o controle remoto do ar condicionado e não encontrar e morrer de frio. E querer um pedaço da coberta mas não ter mais permissão para querer. E querer um abraço mas não ser mais permitido ganhar isso. E querer pedir ajuda em relação ao frio mas não ser mais permitido pedir ajuda. E querer ser vista mas não ser mais permitido existir. Esperei ela finalmente cansar do frio e se levantar sem fazer barulho. E enfrentar o dia seguinte, com tudo o que ele tem de real. A realidade cheia de pontas cortantes.
A realidade que transforma uma mulher cheia de sonhos e carinhos e algumas boas frases em mais uma pizza que esfriou. Um delivery vencido. E esperei sofrendo o momento em que ela se olharia no espelho e diria com os olhos borrados que sua ficha caiu. E esperei ela resgatar pelos cantos não íntimos, em silêncio e sem cúmplice, tudo o que era seu com medo de deixar algum rastro ou parecer boba. Esperei sentadinha do lado de fora, com o coração na mão. Com medo dela fazer alguma besteira como beija-lo quatorze vezes mesmo ele sendo mais um desses caras que não vão sequer até a porta pra se despedir ou ligam para saber se o táxi chegou direito. Ainda assim, ela é uma dessas garotas que beijam mais um desses caras quatorze vezes. Porque um desses caras, que dá vontade de beijar quatorze vezes, aparece a cada quatorze caras. E ela se despediu de uma felicidade e uma gentileza que existiram apenas na sua emoção. O que já era algo nessa vida chata cheia de gente chata. Alguém que despertava a sua emoção. E ela finalmente saiu. Ela e seu sorriso triste novamente. Agora um pouco mais triste mas ainda assim iluminado. Ela e sua vontade de tomar banho quente e comer pão de queijo e voltar a ser apenas uma menina que sonha com alguém para se fazer isso junto, pela manhã. Com a maquiagem borrada e o vestido de ontem. E medo de ser confundida com puta na recepção do flat. E com medo dela própria, mais tarde, se confundir com puta. Ela e seus óculos de brinquedo para esconder de brinquedo uma emoção de brinquedo. Usando sua havaianas para uma alma cansada. Achando graça que o dia terminava justamente porque começava de novo. No Ibirapuera as pessoas corriam numa maratona. Cheias de certeza. Ela olhou tudo aquilo com um sono profundo. Enquanto alguns corriam, ela só queria parar. Parar em algum braço, em algum abraço. Parar finalmente. E tomar o banho quente e comer pão de queijo. E ter abraços permitidos para sempre. E poder reclamar do frio para sempre. Ela só queria se sentir quente, ainda que fosse de despedida.
Ela sabia que era amor de um dia e tinha topado, mas não aceitava que o amor de um dia tivesse acabado sem amor. Foi então que eu perguntei de novo, se era isso mesmo o que ela queria. E ela respondeu que não, não era. Mas na vida só existia uma coisa mais forte do que querer: a própria vida. Ela adormeceu no táxi, cansada o suficiente pra não se sentir suja e boba o suficiente pra engolir a saliva feliz, como se ainda pudesse reviver algo que havia morrido tão rápido. Achei aquilo lindo, achei que aquilo era a vida. E acabei dando finalmente o abraço eterno que ela tanto queria e que eu tanto queria. Ainda que se perdoar não melhore a solidão de ninguém. (Delivery - Tati Bernardi)
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